5/08/2020

Réquiem(requiem aeternan dona eis* )para um palhaço morto

Minha infância foi repleta de palhaços, eles estavam nos circos, nas revistas, no rádio, televisão, havia uma revista (gibi) dos palhaços Fred e Carequinha, este último foi um dos palhaços mais famosos do Brasil e atuou durante anos na sua profissão viveu 90 anos e,segundo consta, queria ser enterrado pintado pra, de acordo com ele, alegrar o outro lado. Como a família não respeitou o desejo, tenho certeza que ao chegar ali ( não é muito longe), foi imediatamente pra maquiagem e começar fazer palhaçadas.Alguém não acredita que isto não existe do outro lado? Garanto que sim,há o lugar dos palhaços onde as gargalhadas são infinitas.Não é brincadeira o que digo.Riam se não acreditarem numa verdade tão real como este mundo. Somos mal educados,nossos professores são ignorantes e acredito que são cegos instruindo cegos.Mas isto já é outro assunto.
Em cada circo que passava na cidade sempre havia o grupo de palhaços, eles sempre foram a alma do circo, que tinha outros profissionais,os desafiantes da morte,os domadores, mágicos, os acróbatas,mas eram os palhaços que derrubavam aquela seriedade toda.
 E, o personagem continua vivo até os dias de hoje,basicamente com a mesma função.Estes que citei eram palhaços tradicionais, com a pintura no rosto que esconde a face e surgiram na Comédia  Dell'arte lá pelo século 18, os bobos da corte,humoristas,os atores, palhaços sem a máscara sempre existiram. A arte, o humor acompanha o homem desde que se tem registro de seu caminho sobre a terra.Mostrando o ridículo das ações,a beleza, o amor, a estupidez e outros comportamentos desprezíveis, alguns pagaram com sua vida a ousadia ou critica, mas isto nunca os impediu de fazer.O valor deles é impossível de medir, porque falamos de arte, que sempre toca as pessoas, emociona, encanta, faz rir, chorar, ter medo, experimenta o amor,o desamor, e assim por diante nas emoções humanas.
 Fiz este introito pra falar de um ator que saiu daqui recentemente  (seu nome esta por aí, não há necessidade que o repita e seu nome, talvez, não seja tão importante como os papéis que representou e, não foi Shakespeare em Romeu e Julieta que perguntou: "o que importa um nome, acaso a rosa muda de perfume se trocarem seu nome?")que por anos trabalhou na televisão,teatro,cinema, ora fazendo papéis humorísticos, hora papéis sérios. Lembro de uma novela de grande audiência aonde ele interpretava um aposentado que não recebia sua aposentadoria (ou algo equivalente) e numa das falas reclamava:
-O Brasil está me devendo!
Provavelmente a fala havia sido escrita pelo autor da novela, mas ele deu um peso e carga dramática importante tornando crível o personagem. Era um ator,um"clow"um palhaço, palhaço triste, pesado como todos os palhaços tristes, conscientes de sua profissão e a exercem de forma critica,sem aquele "distanciamento brechetiano", ou seja, vestem o personagem da forma sugerido por Stanislavisk (quase como médium, incorporado no personagem).Nunca consegui rir de suas interpretações havia uma sombra nelas que mais incomodava do que proporcionava alegria, era um olhar forte sobre a realidade que não permitia concessões, podia-se perceber na sua expressão facial e corporal a gravidade de suas representações.Vi outra destas interpretações,onde ele retratava um ex-jogador de futebol que lamentava a decadência do seu corpo,interpretação forte, densa, se trabalhasse em outro país que desse valor maior a sua arte, certamente, seria premiado, talvez, isto fosse uma de suas queixas.O não reconhecimento verdadeiro à sua arte.
E la nave va e recebemos a notícia que o ator realizou seu último monólogo no qual entrega a sua vida para o que chamamos de morte acreditando que é o final da representação, neste mundo, sem imaginar que sai deste mundo para entrar em outro.Como não havia um roteirista e nem um bom diretor ele resolveu escrever e interpretar o monólogo sem nem um iluminador para dar luz a ribalta,um contrarregra para ajudar, ele mesmo abriu as cortinas, leu o texto que havia escrito e levou o ato até o fim, mas não sabia que no teatro como na vida que conhecemos nenhum ato termina sozinho, ele continua vivendo na cabeça de outras pessoas, através de imagens, repetições que prosseguem infinitamente e não acabam com o fechamento da cortina.
No monólogo que escreveu,parece que lamentava o pais e, como via de consequência, o mundo que viveu.
 Creio que aquela fala, lá atrás, "o Brasil me deve" repercutiu fundo em sua vida. Ele queria cobrar uma dívida inexistente, impagável, falando das pessoas e do mundo que encontrou e do qual saiu sem agradecer nada, nem as gentilezas, os aplausos, os sorrisos que provocou,o apreço por sua arte que certamente algumas vezes recebeu neste mundo repleto de ingratitudes, mas, maravilhoso em complexidade e beleza.
 Mas, ele não precisava mesmo agradecer, nós é que agradecemos por ter partilhado de seus personagens, da alegria que proporcionou para muitas pessoas, pela sua seriedade e pela reflexão, por sua arte que o consagrou e certamente será eterna. 



*Dai-lhe o repouso eterno".Com o auxílio do Dicionário Aurélio e wikipedia sobre Carequinha.