3/06/2005

do livro Poemas para ler em voz alta

O Sobrado*


"Cortina vulgar de decência urbana
defende a nudez dolorosa das ruínas do sobrado"
Velho Sobrado (Cora Coralina)




O acaso levou-me aquela rua
esquecida
e o Sobrado,
surgiu
na minha frente,
em ruínas.

Não pude evitar olhar para as janelas
e...de repente,
teu vulto passou na vidraça!
Foi um instante, quase o reflexo,
mas a surpresa foi tanta
que sentei na calçada
esperando rever teu rosto.
Era impossível e improvável...
poderias estar revendo a casa.

Encostado a uma árvore e com afasia,
lembrei aos poucos e quase sem querer
do piano de cauda na sala
que vendemos para um judeu
com a louça da Companhia das Índias
e tomamos banho de dinheiro.

Ouvi dona Mariquinha
reclamando para negra do seu chá
de camomila.
E você subindo as escadas,
quando te conheci
e comentei:_ que casa linda!
_ também gosto dela! Foi a tua resposta.
Encantado no teu sorriso
transferi todos
os compromissos do dia
e saímos a caminhar até que noite nos pegou
por inteiro e
andamos nas ruas do bairro
de madrugada
falamos tanto que
ficamos roucos e
ao fechar os olhos entre teus braços
sonhei com uma montanha azul.

Dava para ouvir nossos risos
confusos
entre as escadas e o ateliê de pintura
onde os morcegos dormiam de dia
e nos escondíamos às horas cheias
e as vazias
que o relógio de carrilhão teimava
em anunciar.
E não foi apenas teu vulto
que vi na vidraça
haviam outros, estampados
como um bordado, rendado, antigo
que amarelou
esquecido num canto.

Ali estava o Sobrado, belo, gigante, triste, envelhecido,
perdera o brilho,
aguardando um operário indiferente
botar abaixo suas paredes.

Consegui ver o assoalho marcado
com passos inúteis, com móveis arrastados,
com passos de dança nos bailes para a sociedade,
com as reuniões de política,
e nosso amor escondido atrás
das portas.

Sei porque se destrói casas
como este Sobrado,
é incômodo e inútil
as cidades precisam de espaço
e todos precisam de dinheiro
e se as lembranças tivessem
algum valor
nos desfaríamos delas, com rapidez e facilidade
esquecendo os abraços,
os beijos, os choros convulsivos, as preocupações,
as precauções e as risadas que ecoaram nos dias
felizes de verão.
Esquecemos tudo,
mas as pedras não esquecem,
algo ficou gravado num pedaço daquele chão,
impossível de tirar, raspar, lavar ou mesmo arrancar,
também ficou um pouco
naquelas plantas feias
que nasceram sem pedir licença e que
apenas os pássaros sabem a razão
de existir.

Ouvi o barulho da cozinha,
a panela de feijão arrastando no fogão
os talheres de prata
e os assuntos que não se podia
falar perto de dona Mariquinha
que enlouquecia e queria pular do primeiro
andar.
Lembrei um pouco do nosso amor,
dos gansos grasnando a
nossa passagem, das pintas na tua
pele
e nossas tatuagens feitas com tuas
tintas,
nas luas cheias
quando uivávamos como lobos sedentos
pelo nosso sangue,
nos cobríamos de pelos,
nos arranhávamos como poucos
e quase nos matávamos de tanto
amar.
E a vida seria só aquilo, não haveria o depois.

E os quadros que pintamos?
que ninguém queria, nem a tia Generosa.
Os conselhos de família, dos amigos, estudando
nosso caso,
tudo e todos contra nós
e o nosso amor de risos, riscos e fugas intermináveis.

Passaram na janela,
num instante teus avós, tios, primos
e primas, as fotos dos mortos na parede,
os sobrenomes importantes, a
altiva elegância e as jóias de família,
hoje no prego de algum agiota.

Como um idiota, perguntei ao Sobrado
onde tinha ido aquela gente
e a resposta veio depois de enorme silêncio:
_algumas noites aqui, são bem animadas.
Aparecem todos os fantasmas, cantam,
dançam, contam piadas
e até a lareira se acende, bebem conhaque,
fumam, você também é convidado...

Interrompendo aquela conversa sem propósito
alguém me tocou no ombro.
_Moço, o senhor precisa de alguma coisa?
Esta passando mal? Está sem cor...
_Não, não, grato, não foi nada, foi um surto,
não é doença, é um ataque...
E a culpa é daquele velho Sobrado!
Grato, obrigado...vou ficar sentado aqui,
apagando se possível,
este velho Sobradodo meu passado.

*Do livro Poemas para ler em voz alta que pode ser encontrado no site da Livraria Cultura