6/28/2008

Exumando pó ou o filho do barbeiro de Fernando Pessoa

Marco Celso Huffell Viola


A mídia e um círculo de parasitas que navega entre as academias adora comemorar, festejar a obra de autores, sejam quais forem, e os centenários,então, são o motivo ideal, cem anos disso ou daquilo.No ano seguinte a obra é esquecida e, na mesma velocidade, um novo autor “centenário” é rememorado. E, todos esses comemoradores, mordem e ganham alguma coisa com isso, ou seus quinze minutos de fama ou dinheiro mesmo.
Agora chegou a vez dos 120 anos de nascimento de Fernando Pessoa. Por que 120 anos?Não entendo a razão de não comemoraram os 119 anos de nascimento ou 121, ou 119 e um quarto... Um recente documentário da Globonews sobre os 120 anos de nascimento de Fernando Pessoa só mostrou o quão foi pequena ou miúda (como dizem os portugueses) a vida de um dos maiores poetas da língua portuguesa e menor ainda a imaginação do repórter, que a determinado momento chega aproximar o poeta português a Leonardo da Vinci em função de duas invenções dele, a carta-envelope e a máquina de escrever com tipos móveis,invenções essas das quais não existe o menor registro.
Por mais que o jornalista buscasse alguma coisa, revirando velhas anotações, fotos, parentes, mais distante ficava da obra do poeta. E, surge a clássica entrevista com um “estudioso,especialista” junto à estátua de bronze que paralisa em metal uma também fase miúda e magra da vida do poeta como se aquela fosse a verdadeira imagem dele.Uma caricatura em metal como tantas outras que povoam as praças do mundo de fantasmas inúteis que só servem para abrigo das pombas ou para os ladrões de bronze.
Dos especialistas,parentes, sobre a vida de Fernando Pessoa, não havia nada mais a declarar sobre ele que já não se soubesse.Em determinado ponto do documentário o jornalista resolveu entrevistar o filho do barbeiro do Fernando Pessoa...Incrível.Há no documentário, também um filme da ex-namorada, do poeta. Pra quê?Vê-se a distância uma senhora com rosto comum, pateticamente, já morta, abanando de uma janela.Nonsense puro.
O poeta não deixou a guarda de sua alma em fotos, parentes desimportantes ou mesmo no esquema de elétricos feito por ele para encontrar com a namorada.Aquilo tudo está velho desfocado,amarelo. O que ele deixou de importante foi a sua obra, não sua vida.”Viver não é preciso.”E ele viveu pouco, quase nada, o suficiente apenas para escrever.Homenagens nunca as teve,apenas um livro publicado durante sua existência física.Mas isso não interessa esses exumadores de pó como se apenas a realidade vivida pelo poeta possa revelar ou dizer sobre sua identidade,impossível para alguém que em toda a sua obra negou a sua. A vida prática do poeta português, a não ser seu encontro com Alesiter Crowlewy e a correção de seu horóscopo, nada teve mais rumoroso,importante, nada absolutamente nada estranho ou digno de nota, ao contrário da obra. A sua vida pode ser comparada aos brasileiros Drumond e Manoel Bandeira,uma vida comum, banal,cuja vida interior é muitas e várias vezes mais rica e habitada que a vida exterior.
A obra do poeta é sua vida interior,o exterior é apenas um rasgo, uma fresta aonde o verdadeiro poeta espia.Há, as exceções, quando a vida do poeta mistura com sua arte,então, existe algum significado associá-los,mesmo assim não completamente, poesia não é arte da realidade. Recentemente ouvi,um desses analistas da obra alheia, ansioso por declarar algo importante,sobre Mario Quintana.Contemporâneo de Mário (eram colegas de redação) ele falou sobre o poeta:“aprendi mais com o silêncio de Mário do com que com suas palavras.” Traduzindo: o poeta não falava com ele. Não dava a mínima importância a esse analista futuro de sua obra.
Não é ótimo?
A necessidade de aduzir, enxertar-se na pessoa da poeta é tanta que vale tudo, mesmo que isso seja completamente insignificante e desnecessário.Mas o que afirmo aqui pode ser associado a outros gêneros de arte, todos têm os seus “especialistas, não criativos” sem luz própria que precisam para sobreviver, se aquecer como mariposas na luz alheia.
Aliás, o filho do barbeiro de Fernando Pessoa perdeu a oportunidade de recolher algumas fiapos do cabelo do poeta ou de sua barba e guardar para posteridade se soubesse, na ocasião, de quem se tratava.E se fosse um filho de barbeiro com imaginação poderia dizer até que Fernando Pessoa pagava com versos ao corte de cabelo do fígaro seu pai.Mas não, tanto ele como o repórter eram um pouco sem imaginação e ficamos nós todos pensando o que poderia fazer um poeta dentro de uma barbearia, imagino que ele também poderia ter escrito o poema A Barbearia, auxiliando, e muito, as entrevistas futuras do filho do barbeiro...Ficou-me a impressão (ou me ficou a impressão?) que o poeta não gostava desse barbeiro e preferia o dono da tabacaria, resta saber se existe algum sobrevivente dessa loja onde ele comprava seus fumos, e se ele aparecer, certamente, vai colaborar apenas com a nossa compreensão da capacidade pulmonar do poeta ou vai esclarecer e espalhar mais fumaça sobre a obra de Alberto Caieiro ou Ricardo Reis?