11/18/2006

De que Barro Somos Feitos ?

O texto a seguir é do irmão de Emanuel Medeiros Vieira, contista premiado, natural de Santa Catarina que hoje reside em Brasília.


“De que barro somos feitos?”
Francisco Xavier Medeiros Vieira


A imagem ainda é nítida, apesar do tempo: Estou sentado sobre uma velha caixa de madeira, cruzando pedaços de barbantes coloridos. Como um rústico artesão, copio e invento modelos de cintas e suspensórios. Fiz várias peças, sempre com muito cuidado. Enquanto durasse o trabalho, mais nada existia no mundo. Cada “obra” concebida era como se fosse uma jóia encontrada, um segredo revelado.

Depois, de porta em porta, ia vender minhas “criações” pela vizinhança. Lembro as cores e os cheiros daqueles dias e lembro os preços do jogo: vinte e cinco cruzeiros. Não seriam réis? E recordo também que no meio desse meu trabalho, um dia, sem aviso, alguém me perguntou: “Tu sabes de que barro somos feitos?”. Eu, que já era crescido, não entendi a pergunta, nem me lembro de quem a fez, mas nunca a esqueci.

Eram bons tempos. Acreditava-se em Papai Noel, no Coelhinho da Páscoa, na Cegonha e no “futuro da Pátria”. Tinha-se muito medo das bruxas, do comunismo e da formiga saúva – que iria destruir o Brasil. Morávamos na rua Blumenau, hoje Victor Konder, num casarão geminado, com porão e sótão cheios de mistério, principalmente quando soprava o vento Sul – que naquela época durava três dias. E se a noite tivesse lua cheia, mortos de medo e de encanto, íamos desvendar seus mistérios, embaixo da Figueira no Jardim Oliveira Belo. E ficávamos assim, olhos arregalados, atentos a cada sombra, sob o balançar das ramagens centenárias e fantasmagóricas.

Época do Marona, bedel da Academia de Comércio, companheiro das batidas de limão do Gato-Preto e dos bares das adjacências, do Curvina, do Manequinha, da Barca Quatro. Época em que A Gazeta, dos irmãos Callado, mal das pernas, inventou a história do MQ, contada em capítulos diários repletos de suspense, nos quais o personagem principal confessava um homicídio praticado, trinta anos atrás, na Agronômica.

José, nosso irmão mais velho, diretor de O Diário da Tarde, para não perder leitores, criou o assustador Capa Preta, “perigoso assaltante”, tornando ainda mais desertas as estreitas ruas da cidade. Os jornaleiros vendiam os exemplares de um e de outro a dois mil réis, quando seu preço era de quarenta centavos. Era também o tempo das paixões políticas.

No pós-guerra, a redemocratização trouxe várias agremiações partidárias – o PTB de Getúlio, o PSD do General Dutra, a UDN do Brigadeiro Eduardo Gomes, esta em oposição ferrenha que, na Ilha, nos agitados comícios, tinha por slogan o “água, leite, luz”, produtos escassos por aqui.

Então, em meio a esse cenário, numa manhã de sábado, Papai chegou da Maternidade Carlos Corrêa e, com ar grave, sentou-se à cabeceira da mesa para o café da manhã e anunciou: - Tive um sonho nesta noite, em que um Anjo me dizia que este é o último filho que Deus nos deu. Era 31 de março de 1945. Emanuel Tadeu desembarcara na Ilha, para alegria da numerosa clã dos Medeiros Vieira, numa casa acolhedora e barulhenta.

Era uma casa, mas parecia um teatro. Ou seria um circo? Tinha “A Volta ao Ninho Antigo” contado pelo José todas as noites, antes que o sono nos alcançasse; tinha também os jornais manuscritos, as declamações, o cinema com lençol estendido, os discursos, os piqueniques. Era uma época em que havia diálogo, em que existia tempo para as coisas essenciais, época sem TV, época literária.

E tinha o Natal, a data mais esperada do ano. E como demorava... Ganhávamos, era regra geral, roupa nova e um tênis branco, de lona, que durava o ano inteiro. Ainda sinto o cheirinho deles. Um tambor, um carrinho, um caminhãozinho, bonecas para as meninas, uma bola, era uma alegria imensa. Todas as noites, depois da festa, por um mês, eu colocava os presentes ganhos junto à cabeceira da cama, para, ao acordar, sentir a sensação daquela noite festiva. Lembro-me, de maneira especial de um bondinho vermelho.

Não esqueço da felicidade de Emanuel quando o presenteei com uma linda bicicleta, com todos os acessórios, comprada a prestações numa loja da Rua Deodoro, cujo proprietário depois passou a vender carros DKW-VEMAG... As férias de verão em Porto Belo, os estudos ao clarear o dia na Chácara, a matéria decorada (Emanuel chegou depois), as viagens de inspeção do Papai, os piqueniques freqüentes. Vivíamos, sem dúvida, uma infância e uma adolescência feliz, apesar do autoritarismo, comum à época, que presidia a educação.

E a base da nossa educação – além, claro, dos valores éticos – foi o amor à cultura. Amor aos livros e às boas histórias. Tínhamos, todos, por esse ambiente em que vivíamos, fome de mundo, que é fome de conhecimento. O espaço mais importante e mágico da casa era a biblioteca. Foi ali que Emanuel cresceu, devorando toda a Coleção Saraiva, que eu assinava e que dei a ele. Lia sem parar, com urgência, como uma necessidade física e espiritual. Leu todos os livros de Emílio Salgari, do Karl May, além dos autores que o iriam marcar para sempre: Machado, Dostoievski, Kafka e Camus.

A paixão pelos livros estimulou ainda mais seu desejo de caminho. E lá foi ele, pelas estradas secundárias, completar os estudos em Porto Alegre. Aficionado pelo cinema e pela literatura, tornou-se contista. Bacharelou-se em Direito, mas nunca advogou. A burocracia, os formalismos, as poses não lhe agradam nunca. Depois, por necessidade, mas não por vocação, tornou-se assessor parlamentar, na Assembléia Legislativa de Santa Catarina e, posteriormente, na Câmara dos Deputados, em Brasília. Mas a verdade é que o poder nunca o seduziu. Não é essa a sua estrada porque Emanuel nasceu poeta.

Um poeta no sentido mais bonito do termo. Alguém que se entrega à vida e à literatura de maneira inteira, visceral, verdadeira. Tanto nos contos quanto nas novelas, nos ensaios ou nos poemas, Emanuel vive as palavras de Paul Auster: "um escritor só pode ser bom se tiver a honestidade de ir ao fundo, ao céu, ao inferno, doa a quem doer." Ele foi fundo, vivendo como escreve – numa coerência intransigente. Qualidade, como se sabe, tão rara quanto bela. Seus textos são apaixonados, têm verve, têm dor profunda, têm uma vida imensa que transborda e que faz vento por onde passa. Não há ninguém que fique indiferente aos seus contos e seus poemas. E isso desde o seu primeiro livro, Expiação de Jerusa, de 1972. E foi lá, no comecinho de tudo, que os textos de Emanuel chamaram atenção de um mineiro, também poeta, chamado Carlos Drummond de Andrade. E vieram muitos prêmios e muitos outros admiradores e leitores fiéis.

Emanuel consegue transformar seus demônios e deuses mais profundos em arte. Não fez da literatura, como tantos, um instrumento para destilar mágoas ou rancores. Mas uma arte que transforma e purifica. E acho que foi assim que ele conseguiu manter a ternura invicta, apesar dos pesares. Durante a famigerada ditadura militar, por rejeitar a brutalidade e a censura, pela ousadia de desafiar o silêncio, foi perseguido, preso e torturado. Foi um entre tantos jovens da sua geração a pagar um preço altíssimo pela sua coerência ética e pela sua coragem. Mas sobreviveu e manteve-se de pé, sem abandonar jamais suas crenças num outro mundo mais justo e mais humano. O que não é pouco, a contar tantos “arrependidos” que andam por aí.

Ele carrega o que de melhor nos deu aqueles tumultuados anos 60: utopia, idealismo, poesia. Paixão. Tudo isso permanece e não é apenas matéria de memória. Foi olhando para essa época, a revendo hoje, sem ingenuidade, que ele tirou as histórias de "Os hippies envelhecidos", livro que recebeu o “Prêmio Othon Gama D’Eça - 2002”, concedido pela Academia Catarinense de Letras ao melhor livro do ano. Foi com os olhos e o espírito daquela década que ele escreveu o também premiado No Altiplano: Contemplando o Comandante Ernesto, livro sobre o Che. Há algo que os une profundamente: Tanto Che como Emanuel têm essa estranha “teimosia” de não aceitar a injustiça como fato natural, seja com quem for e aonde for. Emanuel também me lembra um pouco um outro símbolo daqueles anos: o cineasta Glauber Rocha. Como Emanuel, Glauber tinha essa urgência de vida, a consciência da finitude, a sensibilidade, a necessidade de estar sempre em movimento, produzindo, criando. Não é por acaso que sua casa espiritual é a Bahia. Emanuel é feito daquela terra.

É feito do tempo. Do seu tempo. Como escreveu Nelson Hoffmann: “Toda a obra de Emanuel Medeiros Vieira acompanha o tempo, registra as mudanças, testemunha. Não registra como quem faz um inventário, toma nota, aponta. Não. Emanuel faz a leitura do tempo, do tempo em que está inserido. Faz essa leitura, lendo-se a si mesmo. Lendo-se a si mesmo, no que tem de essencial, lê-se como ser humano universal”.

Emanuel cria e vive, como um velho artesão. Sentado em frente a sua velha máquina de escrever (agora, enfim, um computador), concentrado e em silêncio, ele vai tecendo histórias. Conta, encanta e comove porque escreve com os poros, se mostrando com toda a força e fragilidade. Nele, como diria Maiakovski, “a natureza enlouqueceu e ele é todo, todo coração”. É todo humanidade. Num dos seus mais recentes poemas, Adeus Grécia, Emanuel faz a mesma pergunta que ouvi há quase 70 anos: “De que barro somos feitos?”. Com ele, aprendi que somos feitos de compaixão e de memória.